O Emocional e a Máquina Capital: Por que o Cansaço Não é Individual
O presente texto discute como o capitalismo estrutura formas de subjetivação que atravessam diretamente o emocional, produzindo um estado permanente de exaustão, culpa e sensação de insuficiência.

A exigência de constância emocional tem se tornado uma das marcas mais profundas do nosso tempo. Não se trata apenas de estar “bem” ou “funcionando”, mas de sustentar um estado contínuo de estabilidade emocional que sirva como combustível para a produtividade. O capitalismo contemporâneo opera sobre a subjetividade como parte essencial da sua engrenagem: ele precisa do nosso vigor, da nossa atenção, do nosso entusiasmo e da nossa disponibilidade afetiva para seguir existindo.
E é justamente por isso que o sofrimento emocional, quando aparece, é imediatamente capturado como falha. O sistema não reconhece pausas, não reconhece limites, tampouco reconhece o direito ao colapso. Corpos cansados são interpretados como corpos ineficientes. Emoções intensas são tratadas como ruídos na máquina. E qualquer oscilação — seja ela fruto de esgotamento, adoecimento, desigualdade ou transtorno — é devolvida ao indivíduo como responsabilidade exclusiva.
Mas o emocional não é máquina.
Ele não opera em linha reta.
Não funciona sob demanda.
Não se ajusta à lógica do relógio ou do desempenho.
Nós não somos engrenagens. Somos sujeitos atravessados por história, por classe, por raça, por corpo, por violência, por desejo, por limites — e tudo isso nos constitui muito antes de qualquer jornada de trabalho.
No cotidiano, porém, essa complexidade é apagada. O trabalhador deve sorrir, deve performar estabilidade, deve oferecer um afeto funcional para manter relações, equipes, atendimentos, vendas, empresas. O emocional que interessa ao capitalismo é o emocional produtivo. Tudo o que existe fora dele se torna um problema, um excesso, um incômodo.
E assim, aquilo que sentimos vai sendo silenciado. Não por falta de coragem ou vontade, mas porque o sistema não nos oferece espaço simbólico para viver a vulnerabilidade sem culpa. Tornamo-nos especialistas em nos manter de pé mesmo quando tudo em nós já sinaliza esgotamento.
A exaustão emocional, por isso, não nasce apenas do indivíduo.
Ela nasce de um mundo que exige estabilidade de corpos instáveis,
eficiência de corpos adoecidos
e entusiasmo de corpos cansados.
Nesse cenário, cuidar de si se torna um desafio e, ao mesmo tempo, uma forma de resistência. Não no sentido neoliberal do “autocuidado” estático e mercantilizado, mas no sentido político de reconhecer limites, desacelerar, reterritorializar o corpo e o tempo. Permitir-se sentir é recusar a lógica que transforma dor em improdutividade. É reivindicar um espaço de humanidade onde só existe cobrança.
Reconhecer que o cansaço não é um defeito individual, mas um sintoma estrutural, é parte importante do processo. Isso não nos exime de responsabilidade com nossa própria trajetória, mas amplia a compreensão de que nenhum sofrimento existe isolado — ele é tecido em uma rede de violências, ritmos impossíveis e moralidades produtivistas.
Se o sistema não suporta nossas pausas, nossas dores ou nossos limites, então é preciso que nós suportemos. Que possamos acolher aquilo que sentimos com menos culpa e mais cuidado. Porque, no fim das contas, é justamente esse gesto — aparentemente pequeno, profundamente íntimo — que pode interromper a máquina por um instante e nos devolver a chance de existir fora dela.
Cuidar de si, nesse mundo, não é luxo.
É sobrevivência.
É política.
E, às vezes, é o único lugar onde ainda é possível respirar.
