O que significa existir com TAB em um mundo que exige constância?
Existir com TAB em um mundo que exige constância é viver em tensão com um sistema que romantiza estabilidade e criminaliza variação. O TAB desmonta a fantasia neoliberal de controle absoluto do humor,

Viver com Transtorno Afetivo Bipolar não é alternar entre “altos e baixos”, como repete a caricatura social. É habitar um corpo cuja superfície afetiva nunca está totalmente estabilizada — e, ao mesmo tempo, ser cobrado por uma sociedade que naturalizou a performance contínua como forma de sobrevivência. O mundo exige constância, mas a constância nunca foi uma condição humana: ela é uma invenção histórica, normativa, capitalista. Um comando. Um imperativo de produtividade disfarçado de virtude.
Para quem vive com TAB, esse imperativo não só é cruel — ele é impossível. E é justamente nesse impossível que nascem outras formas de vida.
Há dias em que o corpo acorda como território sísmico: tudo vibra, tudo pulsa, tudo transborda. Há dias em que a energia é uma língua estrangeira, distante. O mundo, porém, não pergunta nada disso. Ele só pergunta se você “entregou”. Se você respondeu. Se você performou. Como se existir fosse uma tarefa linear, com roteiro, gráfico de desempenho e horário comercial.
O TAB não cabe nesse desenho, e talvez nenhum sujeito realmente caiba.
A experiência bipolar revela algo que a sociedade tenta esconder: que a vida não é reta. Que o tempo não é cúbico. Que o sujeito não é uma máquina regulada por metas, agendas e métricas. A oscilação afetiva que compõe o TAB desmonta a fantasia neoliberal de que podemos “controlar tudo”: o corpo, a emoção, o humor, a narrativa, o futuro.
No entanto, essa mesma oscilação produz um tipo de sensibilidade que o mundo não sabe ler. Sensibilidade que percebe sutilezas, que registra nuances, que sente de forma dilatada aquilo que a sociedade tenta anestesiar. Não é dom, não é maldição — é modo de existir. É forma de estar no mundo que carrega intensidade, risco e potência ao mesmo tempo.
E isso tem um custo.
O custo é ter que se justificar o tempo inteiro: por que você está mais silencioso hoje? Por que ontem estava elétrico? Por que sua energia não se mantém igual? As pessoas esquecem que não é só o humor que muda — é o terreno inteiro. O corpo bipolares não acorda sempre no mesmo chão. Ele precisa, todos os dias, se localizar de novo.
É exaustivo. É honesto. É real.
Existe também a culpa, fabricada socialmente, de não acompanhar o ritmo imposto. O capitalismo adestrou nossos afetos para acreditar que “constância” é o critério de valor — como se estabilidade fosse sinônimo de humanidade. Mas que estabilidade é essa que exige violência contra o próprio corpo? Que projeto civilizatório é esse que transforma variabilidade afetiva em falha moral?
Talvez a pergunta não seja “como ser constante vivendo com TAB?”, mas “por que o mundo teme tanto a variação?”. A constância está a serviço do mercado, não da vida. E o TAB, na sua radicalidade, expõe esse mal-estar.
Viver com TAB em uma sociedade que exige constância é um exercício político: é recusar a narrativa de que só um tipo de funcionamento é legítimo. É afirmar que existe vida na instabilidade, existe saber na oscilação, existe subjetividade naquilo que o sistema chama de desordem.
E é também, num plano íntimo, aprender a construir rotinas que não violentem a própria sensibilidade. Construir redes onde se possa existir sem pedir desculpas. Construir uma clínica interna onde o afeto seja fenômeno, não erro.
Existir com TAB é caminhar sobre um chão que muda — mas é justamente essa mudança que ensina o corpo a criar outros passos.
Outras formas de estar.
Outras verdades.
No fim, talvez o mundo é que precise aprender com aquilo que insiste em chamar de instável.
