Quem veio primeiro: o transtorno, ou o diagnóstico?
Será que estamos realmente mais doentes? Um convite a pensar a expansão dos diagnósticos, a patologização da vida cotidiana e como o mal-estar contemporâneo vem sendo traduzido em transtorno.

Nas últimas décadas, observamos um crescimento vertiginoso no número de diagnósticos em saúde mental, tanto no Brasil quanto no mundo. Transtornos como ansiedade, depressão, TDAH, autismo, entre tantos outros, passaram a fazer parte do vocabulário cotidiano. Hoje, não é incomum que crianças, adolescentes e adultos se definam a partir de um laudo, de uma sigla, de um código diagnóstico. Esse fenômeno nos convoca a uma pergunta incômoda, mas necessária: estamos realmente mais doentes, ou estamos transformando experiências humanas em doenças?
Essa questão nos leva ao centro de uma discussão fundamental no campo da psicologia e da psiquiatria contemporâneas: o processo de medicalização e patologização da vida.
Da experiência humana ao transtorno mental
Historicamente, o sofrimento psíquico sempre existiu. Angústia, tristeza, medo, insegurança, crises existenciais, conflitos familiares, dificuldades escolares e inquietações diante do mundo sempre atravessaram a experiência humana. O que muda, ao longo do tempo, é a forma como essas experiências são nomeadas, interpretadas e tratadas.
Na década de 1950, quando surgiu o primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-I), existiam cerca de 106 categorias diagnósticas. Hoje, no DSM-5-TR, ultrapassamos a marca de 300 categorias. Esse crescimento não pode ser explicado apenas como um avanço neutro da ciência. Ele revela também uma mudança profunda na forma como passamos a olhar para o sofrimento.
O que antes podia ser compreendido como conflito, crise, impasse existencial ou resposta a condições adversas de vida, hoje, com frequência, é rapidamente convertido em transtorno, disfunção, déficit ou desordem.
O que é medicalização da vida?
Medicalizar não é apenas prescrever um medicamento. Medicalizar é transformar questões da vida, sejam elas de ordem sociais, educacionais, afetivas, políticas e existenciais, em problemas médicos. Pela medicalização, interpretamos o mal-estar como algo que se localiza exclusivamente no indivíduo, em seu cérebro, em sua biologia, descolando esse sofrimento das condições concretas de existência.
Nesse processo, dificuldades de atenção viram transtornos; tristezas se transformam em depressão; inquietações existenciais passam a ser lidas como ansiedade patológica; comportamentos que fogem à norma tornam-se rapidamente sintomas. Com isso, o sofrimento deixa de ser perguntado e passa a ser classificado. E aquilo que deveria ser escutado em sua singularidade é, muitas vezes, enquadrado em critérios padronizados.
A patologização da vida cotidiana
A patologização é um desdobramento direto desse processo. Patologizar é transformar em doença aquilo que faz parte da própria condição humana. É reduzir experiências complexas, atravessadas por história, cultura, relações e contexto social, a códigos diagnósticos.
A linha que separa o que é considerado “normal” do que é considerado “patológico” torna-se cada vez mais fina. O risco disso é evidente: quanto mais estreitos são os critérios de normalidade, maior é o número de pessoas que passam a caber dentro da categoria de doentes. Assim, a vida vai sendo progressivamente capturada por uma lógica diagnóstica. O sujeito não é apenas alguém que sofre; ele passa a ser “o ansioso”, “o depressivo”, “o TDAH”, “o autista”, como se sua existência pudesse ser reduzida a um rótulo.
O exemplo do autismo e a ampliação das categorias
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um exemplo claro dessa transformação histórica. Na década de 1950, o autismo não existia como categoria própria; era compreendido como um sintoma da esquizofrenia infantil. Hoje, trata-se de um espectro amplo, com múltiplos critérios, níveis de suporte e descrições detalhadas.
Isso não significa, necessariamente, que o autismo “tenha surgido” agora. Significa, antes, que aprendemos a olhar, classificar e nomear de outra forma. O problema surge quando essa nomeação deixa de ser um recurso de compreensão e passa a operar como forma de controle, normalização e adaptação forçada.
Estamos mais doentes, ou mais diagnosticados?
Essa é uma das perguntas centrais da contemporaneidade. É evidente que vivemos em um mundo que produz sofrimento: jornadas exaustivas, precarização do trabalho, instabilidade econômica, enfraquecimento dos vínculos, solidão, violência, excesso de estímulos, culto à produtividade e à performance. Esse cenário, por si só, já é profundamente adoecedor.
Ao mesmo tempo, vivemos sob uma lógica que oferece respostas rápidas para sofrimentos complexos e, muitas vezes, essas respostas vêm na forma de diagnósticos e medicalizações precoces. A angústia vira sintoma; o conflito vira transtorno; o sofrimento perde sua dimensão ética, política e existencial. Assim, deslocamos a pergunta fundamental: em vez de questionarmos “o que neste mundo produz tanto sofrimento?”, passamos a perguntar apenas “qual é o transtorno dessa pessoa?”.
A depressão como expressão do mal-estar contemporâneo
A depressão talvez seja um dos exemplos mais emblemáticos desse cenário. Para além dos critérios clínicos, a experiência depressiva revela algo mais profundo: um esvaziamento do sentido, uma perda de interesse pelo mundo e por si mesmo, uma desconexão radical.
Mas é impossível pensar esse fenômeno sem considerar o modo como nossa sociedade se organiza. Vivemos em um mundo que promete felicidade constante, sucesso, realização plena, mas que, ao mesmo tempo, impõe condições de vida cada vez mais precárias para a maioria das pessoas. Essa contradição gera frustração, culpa, sensação de fracasso e inadequação. A depressão, nesse sentido, não é apenas uma doença individual. Ela também denuncia um modo de existência esvaziado de sentido.
A ciência não é neutra
É fundamental lembrar que a ciência nunca é neutra. Ela é atravessada por interesses políticos, econômicos, culturais e históricos. Os modos de diagnosticar, tratar e nomear o sofrimento refletem as formas como a sociedade se organiza.
Isso não significa negar a existência dos transtornos mentais, nem a importância dos cuidados clínicos. Significa, sim, reconhecer que todo diagnóstico carrega implicações éticas, sociais e subjetivas. Quando tudo vira transtorno, corremos o risco de perder a capacidade de escutar o sofrimento como expressão de uma vida atravessada por conflitos reais.
Mais do que responder, é preciso problematizar
Talvez a pergunta “por que estamos ficando mais doentes?” não comporte uma resposta única. Mas algo parece certo: estamos vivendo um processo intenso de medicalização e patologização da existência. Por isso, mais do que sair em busca de respostas prontas, é fundamental sustentar a pergunta, abrir fissuras, problematizar. Não para negar o sofrimento, mas para devolver a ele sua complexidade, sua história, seu contexto e seu sentido.
O risco de uma sociedade que transforma rapidamente a dor em diagnóstico é o de deixar de escutar aquilo que o sofrimento tenta, desesperadamente, dizer.
Referências:
MATTAR, Cristine. Depressão: doença ou fenômeno epocal? Rio de Janeiro: Via Verita, 2020.
DUNKER, Christian; JUNIOR, Nelson da Silva; PINHEIRO-SAFATLE, Vladmir. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION - APA. Diagnostic and statistical Manual Mental Disorders. Washington, DC: American Psychiatric Association Mental Hospital Service, 1952.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION - APA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5-TR: Texto Revisado. Porto Alegre: Artmed, 2023.
