Sublimação e movimento pulsional
Artigo escrito e apresentado nas Jornadas Internas do Corpo Freudiano seção Rio de Janeiro em novembro de 2025. Nele traço um paralelo entre a sublimação, o gozo e sua relação com a ética clínica.
Artigo escrito e apresentado nas Jornadas Internas do Corpo Freudiano seção Rio de Janeiro em novembro de 2025. Nele traço um paralelo entre a sublimação, o gozo e sua relação com a ética clínica.

É bem estabelecido que os campos da arte e da psicanálise sempre mantiveram relações muito estreitas, são inúmeras as referências de Freud aos artistas em meio às suas elaborações acerca do inconsciente, concebendo o fazer artístico como uma antecipação disso que a psicanálise busca elucidar.
Nunca se tratou, de maneira alguma, de psicanalisar as produções artísticas ou descobrir os sintomas do autor, mas de poder compreender que as criações artísticas seguem o mesmo modelo de constituição da neurose.
É, portanto, nesse palco do inconsciente que o sonho e a fantasia ganham um caráter poético na pena freudiana. As obras de arte são, assim, consideradas pelo analista vias privilegiadas como âmbito de efetivação do inconsciente, já que podem tornar conhecido aquilo que ainda não se conhece.
Para Freud, o substrato pulsional da vida humana estabelece uma tensão permanente com as exigências civilizatórias, naquilo de inconciliável entre essas duas instâncias. É ao abordar o conceito de sublimação que fica estabelecido, portanto, esse lugar privilegiado das artes, pois demonstra como o artista é alguém que cria com seus objetos vias de escoamento desse conflito, tendo em vista que a arte ocasiona uma reconciliação entre os princípios de prazer e de realidade (FREUD, 1911).
É nessa medida de valorizar o pathos artístico que converge, no interior do pensamento freudiano, algumas relações éticas e estéticas.
a metapsicologia freudiana reinveste a imaginação de seus direitos: a fantasia, o devaneio e o sonho possuem um valor próprio, singular e autêntico; é no fantasiar que o sujeito procura reconciliar seus desejos e a realidade insatisfatória — toda a atividade criativa articula, no fio de seu desejo, passado, presente e futuro (FREUD, 1908).
A sublimação se localiza, para tanto, enquanto essa mancha conceitual presente entre o artista e o analista, não sendo do domínio de um ou de outro. Assim, as criações sublimadas ampliam a própria abordagem clínica, tendo em vista que evidenciam as maneiras pelas quais o sujeito se organiza em torno de seu vazio. É frente a esse vazio, que Lacan (1959/60, p. 140) estabelece em seu sétimo seminário, quando às voltas acerca do tema da ética psicanalítica que, “A sublimação eleva o objeto à dignidade da Coisa”, demarcando de vez a relação entre essa peculiar vicissitude da pulsão e o vazio presente na estrutura, seguindo em seu retorno a Freud à mesma tradição de aproximação entre arte e psicanálise. A pulsão sublimada mantém em primeiro plano o campo operacional de das Ding, ao ponto em que vemos Lacan traçar sua proximidade com a própria estrutura do desejo, evidenciando uma grande intimidade entre a sublimação e a ética psicanalítica (METZGER, 2021).
A Coisa, o objeto perdido embora nunca antes possuído a não ser de forma mítica pelo sujeito, que está fadado a tentar reencontrá-la, torna a ganhar dignidade no objeto artístico. É isso que está em jogo na sublimação, a tentativa de elevar um objeto que contorne a Coisa sem evitá-la, mas representá-la no mundo no ato de criação. Lacan (1959/60) afirma que a sublimação é o próprio reconhecimento do desejo como metonímia, em que o desejo é desejo de desejar, não se resumindo a um objeto ou ao outro, mas àquilo que escapa no encadeamento entre eles, naquilo que escapa até mesmo na relação do criador com a criatura. Dessa forma, tanto a sublimação quanto a ética da psicanálise apontam para uma relação de contorno a das Ding, para a instância do real, ambas sintonizam assim com a própria estrutura do desejo.
Portanto, o ato analítico e o ato artístico apontam para uma só Coisa, para esse objeto que está sempre em um vir-a-ser. Dessa forma, é precisamente sobre esse objeto que está sempre a se furtar, pela constituição subjetiva de uma perda irreparável deste, que o ser humano irá buscar na realidade um elemento que viabiliza o circuito pulsional em busca de uma satisfação, a qual será sempre parcial, pois não há modo de satisfazer plenamente uma pulsão, mas sim como falta deixada pela ausência de um objeto de completude (WERNECK & JORGE, 2022). É doravante essa falta ôntica que em seu seminário sobre a relação de objeto (1956/57) Lacan adverte: “jamais, em nossa experiência concreta da teoria analítica, podemos prescindir de uma noção da falta de objeto como central” (p.35). Motivo pelo qual o objeto a lacaniano, que será posteriormente formulado, gira em torno do Banquete de Platão e o amor, evidenciando o caráter sumariamente enigmático do objeto de desejo e sua relação com o real da falta. O objeto a, portanto, esse objeto causa de desejo, diz respeito também a das Ding, a falta estrutural que constitui o sujeito enquanto causa de sua divisão. É a partir desse efeito de hiância que se estabelece entre os significantes que representam o sujeito de onde se implica a queda do objeto a como resto. É desse modo que a sublimação, por ser um destino pulsional que possibilita estabelecer um contorno ao vazio, implica também a emergência do sujeito desejante em seu ato de criação. Sendo a sublimação a única via pulsional pela qual essa falta ôntica do sujeito pode ser suportada ao dar ao objeto seu estatuto de real,
ela acaba por convocar o sujeito a esboçar sempre sua singularidade, a significá-la nessa sustentação do desejo. Por isso pode-se dizer que a sublimação é um processo, é um incessante recomeço (WERNECK & JORGE, 2022). É nesse processo de tentativa da sublimação de assumir essa relação metonímica do desejo, que Lacan ressalta na definição desse destino pulsional a satisfação sem incidência do recalque, a passagem explícita ou implícita do não-saber ao saber. De maneira que a própria experiência analítica poderia ser lido como uma forma de sublimação
O objeto sublimado preserva um vazio que resiste à simbolização e a experiência desse encontro é semelhante ao que Freud descreveu como estranho: a sensação de que há algo de obscuro, há algo de muito familiar no sujeito refletido pelo objeto. Não é que o sujeito se identifique com o objeto artístico, mas trata-se de um objeto no qual ele não reconhece mais sua imagem, formada por identificações e antecipações imaginárias. Um objeto que mostra o que resta do sujeito quando a fortaleza do eu se dissolve”. (LUCERO & VORCARO, 2013, p. 31)
Esse objeto visado pela sublimação, para tanto, se constitui de forma imaginária com seus recursos simbólicos para explicitar e colonizar uma falta inerente do campo do Real, que é das Ding. Em seu modo de apreender o objeto, a arte utiliza do imaginário para organizar simbolicamente esse real, nesse movimento ela traz à tona o vazio, aquele infamiliar que nos é tão íntimo.
Esse Inquietante despertado pelo objeto em causa, se trata antes de tudo, de uma sensação, essa experiência é em primeiro lugar de ordem estética, sensível. Se o reconhecimento desse vazio e uma posterior elaboração a partir dele têm relação com uma mudança de posição do sujeito diante do objeto, é entendível a grande aproximação da sublimação com certo percurso de análise. A presença desse objeto no ato da tentativa do sujeito de reencontrá-lo preenche o lugar da falta, entretanto é nesse seu duplo movimento que, justamente pela aparição de um objeto no campo da realidade, a partir do momento que ele não falta mais, que ela, a falta, está ali, é a presentificação da própria falta (LUCERO, A. & VORCARO, Â. 2013).
É nesse sentido de contornar e presentificar essa falta que a sublimação aponta para a castração, mas não mais como que tomada por uma angústia, e sim para uma fruição, para o que se chama do Gozo Outro, místico, faminino. E o interessante é que ela não para aí, a sublimação ao apontar para esse ilimitado convoca também a castração a partir da inauguração de um novo saber, é um re-esboçar a fantasia, é ao fazer suplência a isso que falta, que a sublimação convoca também Gozo fálico, o gozo da fantasia, aquele único ao qual o sujeito possui acesso
Essa criação de um novo saber, de um saber-fazer-com que não exclui a falta, mas a inclui em seu cerne, é uma das visadas de uma análise em todo o seu potencial sublimatório.
no nível da sublimação, não se trata de identificar-se ao vazio, mas de aludir a ele. Se a falta-a-ser, ou melhor, o falasser, está sempre em visada de um deslizamento metonímico do desejo, está em vista a própria mudança constante de seu objeto, a sublimação entra aqui enquanto que exigindo também essa mudança. É partindo desse ponto do deslizamento metonímico do desejo que Lacan pode articular a ética da psicanálise ao conceito de sublimação, pois se elevar o objeto a dignidade de das Ding é um ato que aproxima-o dessa fronteira, do limite singular dos sujeitos, do campo impossível de seu desejo, então a proposta ética da clínica psicanalítica aponta para esse conceito como um caminho possível rumo ao desejo e a um tratamento do gozo, como uma indicação da direção de tratamento. Ao que se entende que a culpa advinda de “ceder de seu desejo” se relaciona intrinsecamente com abrir mão desse mesmo deslizamento, com abrir mão desse saber outro e inconsciente de si que o atravessamento da clínica e a sublimação podem ofertar, torna-se ainda mais crucial o lugar desse conceito para o campo como um todo, mas principalmente para uma clínica ética.
Psicólogo - CRP 05/83672
Olá! Meu nome é José Lucas Arantes Bueno, sou psicólogo clínico formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e psi...
Ver Perfil Completo